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quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Que bom marido! - Marques de Carvalho

Que bom marido!
(Marques de Carvalho)

A Juvenal Tavares

Não desejarás a mulher do teu proximo.

MANDAMENTO DE DEUS.

Havia já tres annos que estavam casados. Não tinham filhos. Viviam felizes, tranquillos, na sua casinha da estrada de S. Braz, de frente pintada a cal, onde o sol da manhã brincava alegremente n'umas scintillações que davam a nota de grande prazer interno ao passeiante que para ella dirigisse escrutador olhar.

Elle era um velho quarentão, amanuense de secretaría, obeso, rubicundo, de rosto espalmado e barbas hirsutas e grisalhas. A mocidade que tivéra, — tempestuosa e poída nas orgias,—encanecera-lhe completamente os cabellos da cabeça, os quaes desciam para o rosto, onde cruzavam-se numerosas rugas sobre a pelle côr de ginja.

Ella tinha dezoito primavéras,—para me servir d'uma velha expressão do romantismo;—ostentava uma carinha faceira, risonha, d'olhos pretos e marotos. Têz morena e avelludada. Um sorriso excitantemente encantador descerrava-lhe os labios vermelhos, mostrando duas filas de dentes mais alvos do que os de um cão da Terra-Nova. O corpo, flexivel como a haste da angélica, era agil e dotado de seductores meneios, que impressionavam bem profundamente a mais de meia-duzia de gamenhos vadíos,—d'esses namoradores enfatuados que abundam por toda a parte.

O seu regimen de vida era, invariavelmente, este: de manhã, ás 8 horas, depois do respectivo e parco almoço, o sr. Bonifacio escovava com a manga da sobrecasaca o solenne chapéu alto, dava um chôcho á mulher e saía para a repartição com o passo do empregado publico:—impassivel e cadenciado.

Elvira acompanhava o esposo até á porta da rua, fazia-lhe uma pequena caricia e voltava á varanda, afim de dar algumas ordens ácêrca do jantar.

Dispostas as coisas para a segunda refeição, ía sentar-se á machina de costura, que dava-lhe não diminuta receita para as despezas diarias. O ganho d'esses trabalhos e os vencimentos do sr. Bonifacio formavam uma somma bem razoavel todos os mezes, a qual lhes permittia de tempos a tempos o luxo d'um camarote no theatro da Paz e um passeio a bond em noites de luar, um vestido novo para o cyrio de Nazareth, algumas duzias de pistolas e bixinhas na festa de S. João e mais outras regalias, que alegravam o gorducho amanuense e forneciam á encantadora esposa d'elle ensejo de satisfazer a sua natural vaidade de mulher bonita e nova.

Como acontece algumas vezes, a virtuosa esposa do sr. Bonifacio tinha seus adoradores,—rapazes toleirões, aos quaes ella, diga-se a verdade, não ligava muita importancia. Entre esses moços, quem mais assiduamente a requestava era um tal Jacyntho,—um leão conquistador que falava pelos cotovêllos, muito tolo, ignorante de tudo, excepto da arte do namoro atrevido. Este Jacyntho apaixonára-se por Elvira poucos dias depois do casamento d'ella, por occasião d'um passeio a Benevides. Desde essa época, o pobre namorado sem ventura passava todas as tardes pela casa do Bonifacio, quando Elvira ía para a janella, emquanto o marido, na varanda, jogava o sólo com o taberneiro da esquina e o visinho da direita. Ao passar em frente a Elvira, enviava-lhe um sorriso e um cumprimento. A esposa do honrado amanuense retribuía a este ultimo e conservava-se muito séria, muito digna, sem corresponder áquelle. Passavam os dias, passavam os mezes, e Jacyntho era pontual á entrevista, na qual Elvira já parecia interessar-se, pois que tambem não deixava de ir para a janella assim que, lá na varanda, o sr. Bonifacio, o taberneiro e o vizinho começavam no passo e no bólo. É que a interessante senhora tinha um espirito ardente, phantasista, que não podía se contentar com os sós affagos morosos e frios do velho Bonifacio. Não obstante, nenhum passo mau desejava dar. Entregava-se áquillo a que chamava "uma distracção", mais para satisfazer uma vaga curiosidade do que para commetter um crime.—

Jacyntho não era um homem que perdesse a paciencia. Assistia tranquillo a esse esperdicio de tempo, convicto do axioma que reza: "Agua molle em pedra dura, tanto dá até que fura." Tinha confiança no futuro, que resolvería, com vantagem,—aquelle interessante problema de amor.

Uma tarde,—era em meiados de junho, passou o Jacyntho, devéras admirado por ver que a sua querida não estava á janella. Olhou para os dois lados da rua e não enxergou ninguem. A estrada de S. Braz apresentava a apparencia de um velho cemiterio abandonado: nem um só vivente se via.

Constrangido, dispoz-se a continuar, quando avistou uma rapariguinha mulata, que saía da casa do sr. Bonifacio. Correu a ella e perguntou:

—Onde está a d. Elvira, minha filha?

A mulatinha fitou-o espantada e, curvando a cabeça para o peito, metteu na bocca o index da mão direita, conservando-se calada.

—Vamos, fala, toma um tostão.... Onde está a d. Elvira?—insistía o leão fazendo escorregar um nickel para o seio da pequena.

Esta, ao sentir o contacto da moeda, lembrou-se dos rebuçados da fregueza e disse, ainda meio acanhada:

—Está lá dentro....

—E o sr. Bonifacio?

—Saíu.

—Dou-te outro nickel se fôres levar uma carta á tua senhora, queres?

—Eu quero....

Jacyntho tirou do bolso uma carta que escrevera havia muito tempo e que, por cautella, não datára nem assignára. Entregou-a á mulatinha e conjuntamente outro tostão.

Depois seguiu pela estrada adeante.

Elvira não deu resposta áquella carta, que lhe revelára o grande amor que por ella sentia o Lovelace paraense. Este não desanimou: deixou de passar pela estrada de S. Braz durante dois dias, após os quaes voltou, seguindo pelo passeio, rente á janella. Sacudiu-lhe ao cólo nova epístola.

Repetiu o mesmo jogo por uma semana. Finalmente, Elvira não pôde resistir mais, mandou-lhe uma carta toda cheia de temores, toda receiosa, na qual confessava que o Jacyntho não era-lhe indifferente, mas que devia abrir mãos áquelle amor, porquanto a sua "posição de mulher casada não lhe permittia tão gratas liberdades."

D'então em deante, apezar d'esses receios continuaram as cartinhas a passar dos bolsos do Jacyntho para o seio d'Elvira e do seio d'esta para os bolsos d'aquelle. É que houve uma tarde em que Elvira entrou a confrontar o physico do sr. Bonifacio com o de Jacyntho. Esse confronto e as reminiscencias de muitas leituras romanticas deram causa á correspondencia criminosa.

Havia já alguns mezes que o amor dos dois não tivéra outras expansões além d'aquellas missivas platonicas. O temperamento de Jacyntho era mais exigente.

Uma tarde de dezembro, o sr. Bonifacio descia do bond em frente de casa, de volta d'uma visita que fôra fazer a seu chefe de secção. Transpondo o limiar da porta, encontrou a mulatinha que saía apressadamente, escondendo mal entre as dobras do vestido um objecto que attrahiu-lhe a attenção de velho curioso.

—Que levas ahi?—perguntou.

—Não é nada....—respondeu a rapariga n'essa voz cantada peculiar aos paraenses.

—Não mintas! Eu vi não sei quê!—bradou o sr. Bonifacio puxando-a pelo braço e apoderando-se do objecto.

Era um bilhete. Abriu-o, assestou-lhe os oculos e leu:

"Meu amigo, depois d'amanhã, á meia noite, meu marido vae ouvir a missa do gallo em Sant'-Anna. Finjo-me adoentada para ficar em casa, afim de conversar comsigo e saber d'essa novidade que prometteu contar-me. Venha á 1 hora. Acautelle-se bem; que ninguem o veja.

ELVIRA.»

O Bonifacio subiu ao arame; ficou da côr da purpura e sentiu uma violentíssima dôr de cabeça. Teve impetos ardentes de ir assassinar a esposa infiel; reflectiu, porém, e soccorreu-se d'um alvitre que lhe appareceu a subitas no espirito com rubros lampejos de sanguinaria vingança.

—Toma, leva,—disse entregando a carta á rapariga.

E entrou.—

Batem as 12 horas da noite de 24 de dezembro. Grupos folgasões de moços d'ambos os sexos passa pelas ruas de Belém em direcção ás differentes egrejas onde se deve rezar a missa do gallo.

O sr. Bonifacio, que levantou-se á ultima pancada das 11 horas, sae para a rua, deixando em casa a mulher incommodada "com muita dôr de cabeça...."

Á 1 hora, um vulto appareceu na esquina, approximando-se a passos ligeiros até chegar em frente ao domicilio do amanuense Bonifacio. Era o Jacyntho, que bateu pressuroso e baixinho em uma das janellas. Respondeu-lhe do interior um leve arruido. Jacyntho estremeceu de contentamento, pregosando os prazeres que ía fruir na conversação de Elvira, quando subitamente exhalou um grito, dando um salto para o lado.

Era o respeitavel sr. Bonifacio, que saíndo de traz da mangueira onde occultára-se, desancava a bom desancar o peralvilho que tivéra a lembrança de namorar-lhe a mulher.

Quando Jacyntho saltou para o meio da rua, recorreu o sr. Bonifacio á pouca agilidade que ainda possuía e acompanhou-o, continuando a soval-o fortemente, n'uma agitação febril....

O pobre rapaz gritava dolorosamente. Ninguem acudiu-lhe: todos os vizinhos haviam saído para a missa do gallo.

Quando cançou, quando os braços negaram-se a continuar, o honrado amanuense, despedindo olhares terriveis para todos os lados, disse ao Jacyntho, que achava-se por terra, com os ossos quasi moídos:

—Vá-se embora, seu tratante e tenha mais juiso! Não torne a caír na asneira de namorar moças casadas!

E retirou-se para casa, a cuja porta entreaberta estava Elvira, tranzida de medo.

Desillusão - Marques de Carvalho

Desillusão
(Marques de Carvalho)

A Fontes de Carvalho

A sra. d. Joaquina era uma d'essas impagaveis solteironas, que vivem sonhando amores e descobrindo tímidas paixões nas palavras alegremente zombeteiras dos moços que fingem cortejal-as por distracção.

Tinha ella a tez,—enrugada e molle como a casca do janipapo maduro,—salpicada d'essas manchas amarellas a que chamam sardas; encobria-as,em parte, com grandes e repetidas camadas de pó de arroz, comprado sempre na Loja Mariposa, da qual o co-proprietario Affonso,—o sympathico

Affonso,—vendia-lh'o com muita dóse de réclames e chamadas de attenção para a superioridade da fazenda.

Usava uns vestidos fóra da moda, mal feitos, com algumas nódoas, nos quaes primavam os enfeites vistosos,—uma garridice da sra. d. Joaquina.

O rosto d'ella denunciava 45 annos bem seguros entre os refêgos da engelhada epiderme,—posto que os cabellos, pretos e lustrosos como a cara suada d'um negro de Minas, mostrassem porventura uma prova de menos edade.

As pessoas que viviam mais intimamente com ella murmuravam phrases pouco lisongeiras para os seus brios de "senhora bastante apresentavel e digna do direito de aspirar a um bom casamento"—como ella pensava e dizia mui confidencialmente a certas amigas particulares.

Sempre houve maledicentes no mundo (salve a chapa!): foi por isso que uma d'essas amigas, tendo tido uma altercação com ella, retirou-se de seu trato intimo, e espalhou pelos conhecidos a noticia de que a nossa personagem pintava os cabellos, que, se não recebessem quotidianamente os respectivos affagos da esponja embebida em tintura, já deveriam estar soffrivelmente russos, quando não grisalhos. Parte dos ouvintes duvidou, suppoz equivaler aquella affirmativa a uma intriga motivada pela recente inimizade; a outra parte acreditou, naturalmente.

A sra. d. Joaquina possuia uma educação mediocre, apenas sufficiente para conhecer os seus deveres de "moça solteira", quanto á educação moral; quanto á intellectual, lia com desembaraço e alguns tropeços prosódicos as cartas repassadas de sentimentalidade de dois ou tres namorados que tivera antigamente.

Eram essas leituras um desopilativo benefico para o seu spleen de senhora entrada em annos e votada á lastimosa condição de tia. Ai! A pobre d. Joaquina lastimava-se com tristeza de não haver em sua mocidade casado com o Guedes, o ferrageiro abastado, que se apaixonara loucamente por seus encantos, quando estes, ainda que em pequenina quantidade, escudavam-se n'uns vinte e dois annos de existencia. Ella não acceitara o amor d'elle, sonhando desposar um joven barão, muito rico e elegante, como um que conhecera n'um romance do insípido Ponson du Terrail. O barão, porém, nunca appareceu. Agora era tarde para remediar o mal: o Guedes, n'um momento de lucida reflexão, resolvera viver em calmo e economico celibato, apenas conservando em casa a Belisaria, cosinheira, mulata gorda como um cevado, a qual ministrava-lhe affagos cheios de faceiros quindins, nas horas de amor, e bôas tortas de camarões seguidas de compotas de delicioso bacury, á sobremesa.

Dos outros ex-namorados a sra. d. Joaquina jámais tivera informações exactas, depois que por espontanea vontade os desenganara. Dizia-se vagamente que um fôra negociar ao rio Madeira, d'onde nunca regressou, talvez pela seducção d'alguma yára encantadora. Do outro constava apenas que partira para seu paiz natal,—Portugal,—afim de ir saborear á lareira, nos longos serões de inverno,—quando o suão sibila em as grandes chaminés ennegrecidas,—os succulentos nácos de paios da Beira,—d'aquelles paios tão glutonamente decantados pelo illustre poeta João Penha.

Por ess'arte, achava-se a sra. d. Joaquina em disponibilidade, e, a dizermos tudo, deveremos accrescentar que alimentava agora umas secretas e dulçurosas esperanças de captivar o rebelde coração do Francisco da Natividade, o elegante dono d'uma das melhores lojas da rua dos Mercadores.

Este, porém, parecia não partilhar das mesmas intenções, porquanto ouvia-lhe os suspiros languorosos sem estremecer, sem pestanejar, sequer, n'uma impassibilidade de mumia. Ella armava-lhe ratoeiras amorosas: mandava-lhe flôres, fazia-lhe presentes de toalhas de labyrintho e fronhas bordadas, temperava-lhe o café quando elle ia á casa da familia d'ella, chegava-lhe phosphoros accêsos aos charutos, roçando os dedos nos d'elle, para mudamente lhe revelar a sua paixão.

Comtudo, nada o commovia, e a sra. d. Joaquina rebellava-se intimamente contra o Francisco, quando, a sós, no momento de estender-se na sua fria rede de velha virgem, passava em revista pela memoria todos os seus actos relativos ao bom andamento d'aquelle amor.

Tal era o estado do coração da boa senhora na época em que o Natividade apresentou-lhe um sobrinho seu, recentemente chegado de Portugal.

A fina amabilidade do joven lisboeta, d'uma elegancia tão natural, attraíu as boas graças da digna solteirona, que logo sympathisou com elle. Em menos d'um mez o Raul tinha em a sra. d. Joaquina uma amiga sincera, uma attenciosa admiradora do "seu caracter austero."

Elle, para retribuir-lhe as affabilidades, redobrava de cumprimentos, desfazia-se nas mais requintadas delicadezas.

Levada pelas erupções d'aquelle seu coração vulcanico, ella começou a amar ao sobrinho, com o mesmo ardor com que pouco antes amara ao tio, o Francisco da Natividade. Cedo surprehendeu o bom moço as amorosas manobras da sra. d. Joaquina, e, julgando-o necessario, inteirou o parente sobre o affecto d'ella, para obedecer aos dictames do dever. Ambos riram-se muito da nova asneira da irrisoria senhora.

— Ou porque trouxesse de Lisboa os germens d'uma bronchite, ou porque, já no Pará, apanhasse alguma constipação, Raul adoeceu, ficou pállido, perseguido por uma pequena tosse, e uma tarde, após o jantar, sentiu uma suffocação, seguida de agudas dôres na parte interna do thorax, as quaes communicavam-lhe com as omoplatas. Como tivesse vontade de cuspir, curvou-se a meio sobre uma escarradeira e expelliu um pouco de sangue vivo.

—Santo Deus, que vejo?!—exclamou o tio, assustado.—Já, um medico, depressa! continuou, a correr attonito pela sala....

O facultativo chamado receitou-lhe um medicamento adequado, que estancou o sangue, e retirou-se depois de haver feito duas ou três recommendações sobre o tratamento.

Raul melhorou: dormiu bem durante a noite. Na tarde seguinte, porém, teve uma verdadeira e forte hemoptysia. Lá foi o moleque chamar novamente o doutor.

Depois de auscultal-o, e interrogar sobre a vida passada e climas em que habitara, o medico aconselhou-o a partir para Portugal assim que podesse. Assoberbado por tão assustadora recommendação, o bondoso Francisco da Natividade tratou logo de mandar o sobrinho pelo paquete que do Pará saíu seis dias depois.

No momento em que Raul despedia-se da sra. d. Joaquina, esta, chorando verdadeiras lágrymas de dó e de saudade, tirou do bolso uma carta lacrada a vermelho e deu-a ao enfermo, dizendo-lhe:

—Tome, seu Raul. Guarde isto. Quando chegar a Lisboa, leia e faça o que lhe peço. Mas, antes não a abra, pelo amor de Deus!

—Sim, minha senhora.... Os seus pedidos são ordens para mim.... Adeus!

Chegando á cidade do Tejo, estava Raul n'um auspicioso pé de restabelecimento. Todavia, entrou a medicar-se com cuidado, resguardando-se de tudo quanto podésse fazer-lhe mal. Estes uteis entretenimentos levaram-n'o a esquecer-se da sra. d. Joaquina.—

Passaram os mezes. Raul ficou curado: estava gordo e forte. Como os medicos lhe recommendassem que não viesse ao Brazil, tratou de procurar emprego no continente. Achou um, que pareceu-lhe agradavel. Fez-se caixeiro viajante d'uma conceituada casa commercial, para ir fazer cobranças pelas provincias.

Na vespera do dia em que tinha de seguir para a primeira excursão,—ao Alemtejo,—estava elle arrumando umas roupas, quando, introduzindo a mão no bolso d'um paletot que só vestia em viagem, encontraram seus dedos um objecto qualquer. Tirou-o para a claridade e viu uma carta toda amarrotada e suja. Reconheceu-a logo: era a carta que lhe déra a sra. d. Joaquina.

—Ah! que esquecimento o meu!—exclamou.—Que juizo não terá feito a meu respeito a impagavel senhora....

E, cheio de curiosidade, rasgou o sobrescripto.

"Meu bom amigo,—leu.—Devo dizer-lhe uma coisa, que ha muito afflue-me aos labios, sem todavia sentir-me com animo de fazel-o: amo-o, amo-o, com todo o ardor de que é capaz o meu ardente coração! (Isto copiou ella do romance A Caridade Christã, de Escrich,—pensou Raul). Peço-lhe que escreva-me logo, dizendo-me se fui por si acolhido o meu amor. (Aquelle fui é que era genuinamente d'ella, só d'ella; o Raul bem o conheceu). Espero ancioza a sua resposta, com a qual o meu amigo remeter-me-á meia duzia d'AGUA CIRCASSIANA, para eu dar de presente a uma conhecida minha.

Disponha sempre do coração de sua eternamente,—JOAQUINA."

Raul casquinou uma sonora gargalhada terminando a leitura d'aquelle modelo d'orthographia, propriedade de termos e syntaxe; mas, logo fez-se mais serio e:

—Ora bolas!—disse.—Só os cabellos encantavam-me, por serem tão pretos e lustrosos.... E era falsa aquella côr d'azeviche!.... Que desillusão!....

Primeira Manhã - Dalcídio Jurandir

Primeira Manhã
( Dalcídio Jurandir)

Dalcídio Jurandir nasceu na Vila de Ponta de Pedras, Ilha do Marajó (PA), em 10 de janeiro de 1909, filho de Alfredo Pereira e Margarida Ramos. Em 1910 mudou-se para Vila de Cachoeira, na mesma ilha. Ali passou sua infância, aprendendo com sua mãe as primeiras palavras.

Em 1916, passou a freqüentar a Escola Mista Estadual. Fez o curso primário do Professor Francisco Leão, em 1921. No ano seguinte, partiu para Belém, onde se matriculou no 3º ano elementar do Grupo Escolar Barão do Rio Branco.

Obtém o certificado de estudos primários, em 1924. Matricula-se, no ano seguinte, no Ginásio Paes de Carvalho. Antes de completar o segundo ano, em 1927, cancelou sua matrícula e viajou para o Rio de Janeiro (RJ), a bordo do navio do Loide, Duque de Caxias, em 1928.

No Rio, enfrentou dificuldades ao chegar. Foi lavador de pratos no Café e Restaurante São Silvestre, no bairro da Saúde. Conseguiu, após um breve tempo, o lugar de revisor na revista "Fon-Fon", onde colaborou sem remuneração. Voltou a Belém no mesmo navio, tendo aproveitado a viagem para ler livros de clássicos portugueses e de poetas nacionais, que lhe foram emprestados por seu amigo, Dr. Raynero Maroja.

Em 1929, Dr. Raynero, como Intendente Municipal de Gurupá, no Baixo Amazonas, nomeou-o Secretário Tesoureiro da Intendência Municipal. Segue para Gurupá em outubro. Lá escreveu a primeira versão de "Chove nos campos de Cachoeira".

Em novembro de 1930, deixou o cargo para trabalhar na região das Ilhas, município de Gurupá, às margens do rio Baquiá, de propriedade de Pais Barreto, que se tornara seu amigo e ensinara as primeiras letras a seus dois filhos.

Em 1931, conclui um livro de contos e um romance, nos quais narra lembranças da infância em Marajó. Fez versos e descreveu paisagens. Retornou a Belém, sendo nomeado auxiliar de gabinete da Interventoria do Estado. Colaborou com vários jornais e revistas, como “O Imparcial”, “Crítica” e “Estado do Pará” e, no ano seguinte, na “Guajaramirim” e “A Semana”. Comunista assumido participou ativamente do movimento da Aliança Nacional Libertadora. Foi preso em 1935, tendo ficado dois meses no cárcere.

Em 1937, foi preso novamente e ficou três meses detido. Somente em 1938 retornou a Marajó, reassumindo suas funções na Diretoria de Educação e Ensino, tendo sido designado a exercer a comissão de Inspetor Escolar em Salvaterra. Reescreve o livro “Chove nos campos de Cachoeira” e, também, concluiu seu segundo romance, “Marinatambalo”, publicado sob o título de Marajó. Colabora nas revistas “Terra Imatura” e “Pará Ilustrado”.

Em 1940, foi agraciado com o Prêmio Dom Casmurro de Literatura, concedido pelo jornal de mesmo nome e pela Editora Vecchi, com o romance "Chove nos Campos de Cachoeira". Faziam parte do júri, entre outros, Oswald de Andrade, Jorge Amado, Rachel de Queiroz e Álvaro Moreira.

Voltou ao Rio de Janeiro, em 1941, onde seu livro premiado foi lançado. Retorna a Belém e passou a trabalhar na Delegacia de Recenseamento. No final do ano viajou para o Rio de Janeiro, onde passou a exercer, em 1942, intensa atividade jornalística em “O Radical” e “Diretrizes”, sendo que neste último atuava como redator, repórter e colunista.

Em 1944, fechado o semanário “Diretrizes”, passou a redigir textos publicitários e legendas para filmes de educação sanitária no Serviço Especial de Saúde Pública – SESP. Colabora com o “Diário de Notícias”, no “Correio da Manhã” e na revista “Leitura”.

Em 1945 e 1946, fez parte da redação do jornal “Tribuna Popular” e colaborou nos jornais “O Jornal”, “A classe operária” e na revista “O Cruzeiro”.

No ano seguinte, seu livro “Marajó” foi editado pela Livraria José Olympio Editora.

Pela "Imprensa Popular", em 1950, foi ao Rio Grande do Sul fazer uma pesquisa acerca do movimento operário do porto do Rio Grande. Desse trabalho surgiu seu livro “Linha do Parque”, escrito entre 1951 e 1955.

Viajou a União Soviética, em 1952.

Foi ao Chile, em 1953, onde participou do Congresso Continental de Cultura.

Em 1956, no seminário “Para Todos”, trabalhou ao lado de Jorge Amado, como redator.

Lança pela Livraria Martins Editora, seu terceiro romance: “Três casas e um rio”, em 1958.

Publica, em 1959, o romance “Linha do Parque”, pela Editora Vitória.

No ano seguinte, publica “Belém do Grão Pará”, pela Livraria Martins Editora. Recebeu o Prêmio Paula Brito, da Biblioteca do Estado da Guanabara, e o Prêmio Luiz Cláudio de Souza, criado pelo Pen Club do Brasil.

A edição russa do romance “Linha do Parque” é lançada em Moscou no ano de 1962, com apresentação de Jorge Amado.

Publica, em 1963, “Passagem dos inocentes”, pela Livraria Martins Editora.

Termina de escrever “Os habitantes”, em 1967.

Em 1968, lança pela Livraria Martins Editora, “Primeira manhã”, e conclui “Chão de Lobos”, penúltimo romance da série “Extremo-Norte”.

O último romance da série acima citada, “Ribanceira”, é concluído em 1970.

Pela Livraria Martins Editora publica, em 1971, o romance “Ponte do Galo”. Aposentou-se, como escritor.

Em 1972, a Academia Brasileira de Letras concede ao autor o Prêmio Machado de Assis de Literatura, pelo conjunto de sua obra, que lhe foi entregue por Jorge Amado.

Recebe, em 1974, do Governo do Estado do Pará, o título honorífico de “Honra ao Mérito”.

A segunda edição de seu romance “Chove nos campos de Cachoeira” é lançada em 1976 pela Livraria Editora Cátedra. “Os habitantes” é publicado pela Editora Artenova. Lançou, também, pela Record, o livro “Chão dos lobos”. Fez diversas viagens a nações da América do Sul e a países socialistas e europeus.

“Ribanceira” foi publicado, pela Record, em 1978, e, no ano seguinte, a segunda edição de “Marajó”, pela Cátedra.

No dia 16 de junho de 1979, o escritor falece na cidade do Rio de Janeiro (RJ), sendo sepultado no Cemitério de São João Batista.

A prefeitura de Belém homenageia o autor, dando seu nome a uma praça pública naquela cidade.

O prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Dr. Israel Klabin, dá seu nome a uma rua no Condomínio Riviera dei Fiori, na Barra da Tijuca.

Em Ponta de Pedras, sua cidade natal, há uma escola com seu nome.

Em 2001 concorre com demais personalidades ao título de "Paraense do Século". No mesmo ano, em novembro, é realizado o Colóquio Dalcídio Jurandir, homenagem aos 60 anos da primeira publicação de Chove nos Campos de Cachoeira.

Em 2003, foi criado o Instituto Dalcídio Jurandir, na Casa de Rui Barbosa, na cidade do Rio de Janeiro. O Instituto foi idealizado pelo Professor Ruy Pinto Pereira, que é seu presidente. Na ocasião, todo o acervo do autor foi doado por seus filhos — Margarida e José Roberto — para o Arquivo–Museu de Literatura Brasileira daquela Casa.

Em 2004, Dalcídio foi o patrono da VIII Feira Pan-Amazônica do Livro, ocorrida entre 17 e 26 de setembro daquele ano.

Primeira Manhã

Em "Primeira manhã", uma longa descida será acompanhada por Alfredo quase por acaso, ao encontrar, em um passeio noturno, duas vizinhas que se dirigiam à caça dos maridos, tentando confirmar traições que eles teriam cometido. Nesse longo episódio, o que acontece no decorrer é mais importante do que propriamente o desfecho, longamente mantido em suspense, retardado por um rememorar entre divertido e amargo da vida das duas mulheres, especialmente D. Abigail, a mais falante delas. Dessa forma, a trajetória em busca dos maridos traidores também se converte em desabafo com o quase desconhecido que as acompanha nesse percurso de descida: “À proporção que elas acusavam, iam se tornando vencidas, sem razão, nem esperança, enlaçadas na sedução da viagem e do que a noite consentia. Durante o trajeto, o narrador menciona, a certa altura, a natureza descendente dessa empresa, associada à noite, aos ruídos desconhecidos e agourentos, ou seja, ao rumo infernal do percurso empreendido por esses três solitários: “Na busca do marido, D. Abigail ia também desesperadamente curiosa dos infernos onde ele fumegava, e das rivais, não ciumenta, mas invejosa.” Aí aparece, com toda a ambivalência, o significado da associação dos prostíbulos a “inferninhos” e se demonstra que a ida até lá, se é penosa e sofrida para mulheres que se sentem traídas, também contém certa dose de curiosidade e mistério pelo que o lugar possa apresentar em sua configuração ou por suas habitantes, especialmente se são ambientes interditos para mulheres casadas. Na ocasião, não é de se estranhar, como faz a amiga Ivânia, que D. Abigail fale demais sobre suas vidas, pois, nessa descida, também ocorre uma espécie de descenso social, pelo menos um momentâneo romper de fronteiras, ao abrigo da noite; e as duas mulheres deixam de ser aquelas que são “casadas da cabeça aos pés”, como afirmara o narrador anteriormente, e se transformam em pessoas comuns, desabafando sobre o que se passa na intimidade de suas casas. No entanto, a cena termina abruptamente para Alfredo sem que o leitor saiba o desfecho da busca, pois as duas o deixam para trás sem explicação, deixando entrever que caberia apenas a elas cumprirem aquela descida até o fim, mais sombria ainda pela associação com o mundo noturno, povoado de sombras e ruídos sinistros. Nesse mesmo romance, ainda há a longa descida da sempre ausente e tão presente Luciana, que tem de cumprir uma longa e dolorosa via crucis pela suspeita de ter dado “um mau passo”, significativamente libertada da prisão que os pais lhe impuseram por um raio: da associação com a intervenção divina para redimi-la da injustiça que se estava cometendo é um passo. Se, por um lado, ela só aparece no romance por meio do discurso dos outros personagens, sua presença está sempre se renovando graças à obsessão que Alfredo desenvolve por ela, o que o faz buscá-la em vários lugares da cidade, perguntando a todos que possam dar alguma informação sobre a moça amaldiçoada pelos pais. De certa maneira, Alfredo também a acompanha em sua maldição e descida, pela obsessão e pela busca que realiza incomodado por ter à sua disposição a casa da qual Luciana fora expulsa, num paralelo entre a trajetória dessa personagem e a sua própria, humilhado que fora pelos colegas do Ginásio: Agora, esta casa à disposição do estudante que fugiu do estudo, à disposição do ginasiano pelo Ginásio escorraçado. Nesta casa, feita para a predileta vir morar. A anônima corre as ruas da Babilônia, moendo a sua farinha, passa os rios, não mais a tenra nem a delicada.

A desabençoada nunca há de pôr o pé neste soalho, nunca há de ver o mundo debruçada desta janela.

“Desabençoada” pelos pais, Luciana perdera o lugar que agora é ocupado por Alfredo e este junta mais esta obsessão às suas tantas outras buscas.

Elementos da Narrativa elaborados pelo professor Lanirson Cabral da Silva

ELEMENTOS NARRATIVOS DO ROMANCE PRIMEIRA MANHÃ

Personagens:

Principal: Alfredo

Secundários: Luciana, D. Abigail, Ivânia

Tempo: Cronológico ( pós-ciclo da borracha e da Belle Epóque)

Enredo Linear

Narrador: Onisciente e onipresente

Espaços:

Físico: Belém-Pará / Social: Valores interioranos, familiares educacionais, morais, sociais, memorialistas e sociais

Tipificação: Oitavo Romance do Ciclo Extremo Norte

Temática:- Os dissabores diante da educação e da decadência de uma cidade ( Belém); As expectativas frustradas de um estudante em primeiro dia de aula; As experiências de um jovem num liceu

Fonte: http://llfeioleituras.blogspot.com/2011_05_01_archive.html